Spes non confundit
BULA
DE PROCLAMAÇÃO DO JUBILEU ORDINÁRIO
DO
ANO 2025
FRANCISCO
BISPO
DE ROMA, SERVO DOS SERVOS DE DEUS
A
QUANTOS LEREM ESTA CARTA
QUE
A ESPERANÇA LHES ENCHA O CORAÇÃO
1.
«Spes non confundit – a esperança não engana» (Rm 5, 5). Sob o sinal da
esperança, o apóstolo Paulo infunde coragem à comunidade cristã de Roma. A
esperança é também a mensagem central do próximo Jubileu, que, segundo uma
antiga tradição, o Papa proclama de vinte e cinco em vinte e cinco anos. Penso
em todos os peregrinos de esperança, que chegarão a Roma para viver o Ano Santo
e em quantos, não podendo vir à Cidade dos apóstolos Pedro e Paulo, vão
celebrá-lo nas Igrejas particulares. Possa ser, para todos, um momento de
encontro vivo e pessoal com o Senhor Jesus, «porta» de salvação (cf. Jo 10,
7.9); com Ele, que a Igreja tem por missão anunciar sempre, em toda a parte e a
todos, como sendo a «nossa esperança» (1Tm 1, 1).
Todos
esperam. No coração de cada pessoa, encerra-se a esperança como desejo e
expetativa do bem, apesar de não saber o que trará consigo o amanhã. Porém,
esta imprevisibilidade do futuro faz surgir sentimentos por vezes contrapostos:
desde a confiança ao medo, da serenidade ao desânimo, da certeza à dúvida.
Muitas vezes encontramos pessoas desanimadas que olham, com ceticismo e
pessimismo, para o futuro como se nada lhes pudesse proporcionar felicidade.
Que o Jubileu seja, para todos, ocasião de reanimar a esperança! A Palavra de
Deus ajuda-nos a encontrar as razões para isso. Deixemo-nos guiar pelo que o
apóstolo Paulo escreve precisamente aos cristãos de Roma.
Uma Palavra de esperança
2.
«Uma vez que fomos justificados pela fé, estamos em paz com Deus por Nosso
Senhor Jesus Cristo. Por Ele tivemos acesso, na fé, a esta graça na qual nos
encontramos firmemente e nos gloriamos, na esperança da glória de Deus (…). Ora
a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações
pelo Espírito Santo que nos foi dado» (Rm 5, 1-2.5). São Paulo oferece-nos aqui
vários pontos de reflexão. Sabemos que a Carta aos Romanos assinala uma
passagem decisiva na sua atividade evangelizadora. Até então, desenvolveu-a na
zona oriental do Império; agora espera-o Roma com tudo o que esta representa
aos olhos do mundo: um grande desafio, que há de enfrentar em nome do anúncio
do Evangelho, que não conhece barreiras nem fronteiras. A Igreja de Roma não
foi fundada por Paulo, mas este sente um vivo desejo de lá chegar logo que
possível, para levar a todos o Evangelho de Jesus Cristo, morto e ressuscitado,
como anúncio da esperança que realiza as promessas, introduz na glória e não
desilude porque está fundada no amor.
3. Com efeito, a esperança nasce do amor e funda-se no amor que brota do Coração de Jesus trespassado na cruz: «Se de fato, quando éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com Ele pela morte de seu Filho, com muito mais razão, uma vez reconciliados, havemos de ser salvos pela sua vida» (Rm 5, 10). E a sua vida manifesta-se na nossa vida de fé, que começa com o Batismo, desenvolve-se na docilidade à graça de Deus e é por isso animada pela esperança, sempre renovada e tornada inabalável pela ação do Espírito Santo.
Na verdade, é o Espírito Santo, com a sua presença perene no caminho da Igreja, que irradia nos crentes a luz da esperança: mantém-na acesa como uma tocha que nunca se apaga, para dar apoio e vigor à nossa vida. Com efeito a esperança cristã não engana nem desilude, porque está fundada na certeza de que nada e ninguém poderá jamais separar-nos do amor divino: «Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? (…) Mas em tudo isso saímos mais do que vencedores graças Àquele que nos amou. Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, Senhor nosso» (Rm 8, 35.37-39). Por isso mesmo esta esperança não cede nas dificuldades: funda-se na fé e é alimentada pela caridade, permitindo assim avançar na vida. A propósito escreve Santo Agostinho: «Em qualquer modo de vida, não se pode passar sem estas três propensões da alma: crer, esperar, amar». [1]
4. São Paulo é muito realista. Sabe que a vida é feita de alegrias e sofrimentos, que o amor é posto à prova quando aumentam as dificuldades e a esperança parece desmoronar-se diante do sofrimento. E, no entanto, escreve: «Gloriamo-nos também das tribulações, sabendo que a tribulação produz a paciência, a paciência a firmeza, e a firmeza a esperança» (Rm 5,3-4). Para o Apóstolo, a tribulação e o sofrimento são as condições típicas de todos aqueles que anunciam o Evangelho em contextos de incompreensão e perseguição (cf. 2 Cor 6, 3-10). Mas em tais situações, através da escuridão, vislumbra-se uma luz: descobre-se que a evangelização é sustentada pela força que brota da cruz e da ressurreição de Cristo. Isto faz crescer uma virtude, que é parente próxima da esperança: a paciência. Habituamo-nos a querer tudo e agora, num mundo onde a pressa se tornou uma constante. Já não há tempo para nos encontrarmos e, com frequência, as próprias famílias sentem dificuldade para se reunir e falar calmamente. A paciência foi posta em fuga pela pressa, causando grave dano às pessoas; com efeito sobrevêm a intolerância, o nervosismo e, por vezes, a violência gratuita, gerando insatisfação e isolamento.
Além
disso, na era da internet, onde o espaço e o tempo são suplantados pelo «aqui e
agora», a paciência deixou de ser de casa. Se ainda fôssemos capazes de admirar
a criação, poderíamos compreender como é decisiva a paciência. Esperar a
alternância das estações com os seus frutos; observar a vida dos animais e os
ciclos do respetivo desenvolvimento; ter os olhos simples de São Francisco, que
no seu Cântico das Criaturas, escrito precisamente há 800 anos, sentia a
criação como uma grande família, chamando «irmão» ao sol e, à lua, «irmã». [2]
Redescobrir a paciência faz bem a nós próprios e aos outros. Frequentemente São
Paulo recorre à paciência para sublinhar a importância da perseverança e da
confiança naquilo que nos foi prometido por Deus, mas sobretudo testemunha que
Deus é paciente conosco: Ele, que é «o Deus da paciência e da consolação» (Rm
15, 5). A paciência – fruto também ela do Espírito Santo – mantém viva a
esperança e consolida-a como virtude e estilo de vida. Por isso, aprendamos a
pedir muitas vezes a graça da paciência, que é filha da esperança e, ao mesmo
tempo, seu suporte.
Um
caminho de esperança
5.
Deste entrelaçamento de esperança e paciência, resulta claro que a vida cristã
é um caminho, que precisa também de momentos fortes para nutrir e robustecer a
esperança, insubstituível companheira que permite vislumbrar a meta: o encontro
com o Senhor Jesus. Apraz-me pensar que um percurso de graça, animado pela
espiritualidade popular, tenha antecedido a proclamação do primeiro Jubileu em
1300. Com efeito, não podemos esquecer as diversas formas através das quais se
derramou com abundância a graça do perdão sobre o santo Povo fiel de Deus.
Recordemos, por exemplo, o grande «perdão» que São Celestino V quis conceder a
quantos iam à Basílica de Santa Maria de Collemaggio, em Áquila, nos dias 28 e
29 de agosto de 1294, seis anos antes do Papa Bonifácio VIII instituir o Ano
Santo. Por isso, a Igreja já tinha a experiência da graça jubilar da
misericórdia. E antes ainda, em 1216, o Papa Honório III acolhera a súplica de
São Francisco, que pedia a indulgência para quantos tivessem visitado a
Porciúncula nos dois primeiros dias de agosto. O mesmo se pode dizer da
peregrinação a Santiago de Compostela: de facto, o Papa Calisto II, em 1122,
concedeu que se celebrasse o Jubileu naquele Santuário sempre que a festa do
apóstolo Tiago calhasse num domingo. É bom que continue esta modalidade
«generalizada» de celebrações jubilares, de modo que a força do perdão de Deus
sustente e acompanhe o caminho das comunidades e das pessoas.
Não
é por acaso que a peregrinação representa um elemento fundamental de todo o
evento jubilar. Pôr-se a caminho é típico de quem anda à procura do sentido da
vida. A peregrinação a pé favorece muito a redescoberta do valor do silêncio,
do esforço, da essencialidade. Também no próximo ano, os peregrinos de esperança
não deixarão de percorrer caminhos antigos e modernos para viver intensamente a
experiência jubilar. Além disso, na própria cidade de Roma, haverá itinerários
de fé que se juntarão aos tradicionais das catacumbas e das Sete Igrejas.
Deslocar-se dum país ao outro como se as fronteiras estivessem superadas,
passar duma cidade a outra contemplando a criação e as obras de arte, permitirá
acumular experiências e culturas diferentes e levar dentro de si, harmonizada
pela oração, a beleza que faz agradecer a Deus as maravilhas que Ele realizou. As
igrejas jubilares, ao longo dos percursos e em Roma, poderão ser oásis de
espiritualidade onde é possível restaurar o caminho da fé e dessedentar-se nas
fontes da esperança, a começar pelo sacramento da Reconciliação, ponto de
partida insubstituível dum verdadeiro caminho de conversão. Nas Igrejas
particulares, deve ser dada uma atenção especial à preparação dos sacerdotes e
dos fiéis para as Confissões e para o acesso a este sacramento na sua forma
individual.
Aos
fiéis das Igrejas Orientais, sobretudo àqueles que já estão em plena comunhão
com o Sucessor de Pedro, quero dirigir um convite particular a cumprir esta
peregrinação. Eles que tanto sofreram, muitas vezes até à morte, pela sua
fidelidade a Cristo e à Igreja, hão de sentir-se particularmente bem-vindos a
Roma, que também é Mãe para eles e conserva tantas memórias da sua presença. A
Igreja Católica, que está enriquecida pelas suas liturgias muito antigas e pela
teologia e espiritualidade dos Padres, monges e teólogos, quer exprimir
simbolicamente o acolhimento deles e dos irmãos e irmãs ortodoxos, num tempo em
que vivem já a peregrinação da Via-Sacra, sendo muitas vezes obrigados a deixar
as suas terras de origem, as suas terras santas, donde a violência e a
instabilidade os expulsam rumo a países mais seguros. Para eles, a experiência
de ser amados pela Igreja, que não os abandonará mas há de acompanhá-los para
onde quer que forem, torna ainda mais forte o sinal do Jubileu.
6. O
Ano Santo de 2025 está em continuidade com os anteriores eventos de graça. No
último Jubileu ordinário, atravessou-se o limiar dos dois mil anos do
nascimento de Jesus Cristo. Em seguida, no dia 13 de março de 2015, proclamei
um Jubileu extraordinário com o objetivo de manifestar e permitir encontrar o
«Rosto da misericórdia» de Deus, [3] anúncio central do Evangelho para toda a
pessoa e em cada época. Agora chegou o momento dum novo Jubileu, em que se abre
novamente de par em par a Porta Santa para oferecer a experiência viva do amor
de Deus, que desperta no coração a esperança segura da salvação em Cristo. Ao
mesmo tempo, este Ano Santo orientará o caminho rumo a outra data fundamental
para todos os cristãos: de facto, em 2033, celebrar-se-ão os dois mil anos da
Redenção, realizada por meio da paixão, morte e ressurreição do Senhor Jesus.
Abre-se, assim, diante de nós um percurso marcado por grandes etapas, nas quais
a graça de Deus precede e acompanha o povo que caminha zeloso na fé, diligente
na caridade e perseverante na esperança (cf. 1Ts 1, 3).
Sustentado
por tão longa tradição e certo de que este Ano Jubilar poderá ser, para toda a
Igreja, uma intensa experiência de graça e de esperança, estabeleço que a Porta
Santa da Basílica de São Pedro, no Vaticano, seja aberta a 24 de dezembro do
corrente ano de 2024, iniciando-se assim o Jubileu Ordinário. No domingo
seguinte, 29 de dezembro de 2024, abrirei a Porta Santa da minha catedral de
São João de Latrão, que celebrará, no dia 9 de novembro deste ano, 1700 anos da
sua dedicação. Posteriormente, no dia 1 de janeiro de 2025, Solenidade de Santa
Maria Mãe de Deus, será aberta a Porta Santa da Basílica Papal de Santa Maria
Maior. Por fim, no domingo 5 de janeiro de 2025, será aberta a Porta Santa da
Basílica Papal de São Paulo Fora dos Muros. Estas últimas três Portas Santas
serão fechadas no domingo 28 de dezembro do mesmo ano.
Estabeleço
ainda que, no domingo 29 de dezembro de 2024, em todas as catedrais e
concatedrais, os Bispos diocesanos celebrem a Santa Missa como abertura solene
do Ano Jubilar, segundo o Ritual que será preparado para a ocasião. Quanto à
celebração na igreja concatedral, o Bispo poderá ser substituído por um
Delegado, propositadamente designado. A peregrinação, desde a igreja escolhida
para a concentração até à catedral, seja o sinal do caminho de esperança que,
iluminado pela Palavra de Deus, une os crentes. Durante o percurso, leiam-se
algumas passagens deste Documento e anuncie-se ao povo a Indulgência Jubilar,
que poderá ser obtida segundo as prescrições contidas no mesmo Ritual para a
celebração do Jubileu nas Igrejas particulares. Durante o Ano Santo, que
terminará nas Igrejas particulares no domingo 28 de dezembro de 2025, zele-se
para que o Povo de Deus possa acolher, com plena participação, tanto o anúncio
de esperança da graça de Deus, como os sinais que atestam a sua eficácia.
O
Jubileu Ordinário terminará com o encerramento da Porta Santa da Basílica Papal
de São Pedro, no Vaticano, na solenidade da Epifania do Senhor, dia 6 de
janeiro de 2026. Que a luz da esperança cristã chegue a cada pessoa, como
mensagem do amor de Deus dirigida a todos. E que a Igreja seja testemunha fiel
deste anúncio em todas as partes do mundo.
Sinais
de esperança
7.
Além de beber a esperança na graça de Deus, somos também chamados a descobri-la
nos sinais dos tempos, que o Senhor oferece. Como afirma o Concílio Vaticano
II, «é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e
interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo
adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da
vida presente e da futura, e da relação entre ambas». [4] Por isso, para não
cair na tentação de nos considerarmos subjugados pelo mal e pela violência, é
necessário prestar atenção a tanto bem que existe no mundo. Porém, os sinais
dos tempos, que contêm a aspiração do coração humano, carecido da presença
salvífica de Deus, pedem para ser transformados em sinais de esperança.
8.
Que o primeiro sinal de esperança se traduza em paz para o mundo, mais uma vez
imerso na tragédia da guerra. Esquecida dos dramas do passado, a humanidade
encontra-se de novo submetida a uma difícil prova que vê muitas populações
oprimidas pela brutalidade da violência. Faltará ainda a esses povos algo que
não tenham já sofrido? Como é possível que o seu desesperado grito de ajuda não
impulsione os responsáveis das Nações a querer pôr fim aos demasiados conflitos
regionais, cientes das consequências que daí podem derivar a nível mundial?
Será excessivo sonhar que as armas se calem e deixem de difundir destruição e
morte? O Jubileu recorde que serão «chamados filhos de Deus» todos aqueles que
se fazem «obreiros de paz» (Mt 5, 9). A necessidade da paz interpela a todos e
impõe a prossecução de projetos concretos. Que não falte o empenho da
diplomacia para se construírem, de forma corajosa e criativa, espaços de
negociação em vista duma paz duradoura.
9.
Olhar para o futuro com esperança equivale a ter também uma visão da vida
carregada de entusiasmo para transmitir. Infelizmente, em muitas situações,
temos de constatar que falta esta perspectiva. A primeira consequência é a perda
do desejo de transmitir a vida. Por causa dos ritmos frenéticos da vida, dos
receios face ao futuro, da falta de garantias laborais e de adequada proteção
social, de modelos sociais ditados mais pela procura do lucro do que pelo
cuidado das relações humanas, assiste-se em vários países a uma preocupante
queda da natalidade. Já noutros contextos, «culpar o incremento demográfico em
vez do consumismo exacerbado e seletivo de alguns é uma forma de não enfrentar
os problemas». [5]
A
abertura à vida, com uma maternidade e uma paternidade responsáveis, é o
projeto que o Criador inscreveu no coração e no corpo dos homens e das
mulheres, uma missão que o Senhor confia aos cônjuges e ao seu amor. Além do
empenho legislativo dos Estados, é urgente que não lhes falte o apoio convicto
das comunidades crentes e da inteira comunidade civil em todas as suas
componentes, porque o desejo dos jovens de gerar novos filhos e filhas, como
fruto da fecundidade do seu amor, dá futuro a toda a sociedade e é uma questão
de esperança: depende da esperança e gera esperança.
Por
isso, a comunidade cristã não pode ficar atrás de ninguém no apoio à
necessidade duma aliança social em prol da esperança, que seja inclusiva e não
ideológica, e trabalhe por um futuro marcado pelo sorriso de tantos meninos e
meninas que, em muitas partes do mundo, venham encher os demasiados berços
vazios. Todos, na realidade, sentem a necessidade de recuperar a alegria de
viver, porque o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,
26), não pode contentar-se com sobreviver ou ir vivendo nem conformar-se com o
tempo presente, satisfazendo-se com realidades apenas materiais. Isto fecha-nos
no individualismo e corrói a esperança, gerando uma tristeza que se aninha no
coração, tornando-nos amargos e impacientes.
10.
No Ano Jubilar, seremos chamados a ser sinais palpáveis de esperança para
muitos irmãos e irmãs que vivem em condições de dificuldade. Penso nos presos
que, privados de liberdade, além da dureza da reclusão, experimentam dia a dia
o vazio afetivo, as restrições impostas e, em não poucos casos, a falta de
respeito. Proponho aos Governos que, no Ano Jubilar, tomem iniciativas que lhes
restituam esperança: formas de anistia ou de perdão da pena, que ajudem as
pessoas a recuperar a confiança em si mesmas e na sociedade; percursos de reinserção
na comunidade, aos quais corresponda um compromisso concreto de cumprir as
leis.
Trata-se
de um apelo antigo que, provindo da Palavra de Deus, permanece com todo o seu
valor sapiencial ao invocar atos de clemência e libertação que permitam recomeçar:
«Santificareis o quinquagésimo ano, proclamando na vossa terra a libertação de
todos os que a habitam» ( Lv 25, 10). O que está estabelecido na Lei mosaica é
retomado pelo profeta Isaías: «O Senhor (…) enviou-me para levar a boa-nova aos
que sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação aos exilados
e a liberdade aos prisioneiros, para proclamar um ano da graça do Senhor» ( Is
61, 1-2). São palavras que Jesus fez suas no início do seu ministério,
declarando em Si mesmo o cumprimento do «ano favorável da parte do Senhor» ( Lc
4, 19). Em todos os cantos da terra, os crentes, especialmente os Pastores,
façam-se intérpretes destes pedidos, formando uma só voz que peça corajosamente
condições dignas para quem está recluso, respeito pelos direitos humanos e
sobretudo a abolição da pena de morte, uma medida inadmissível para a fé cristã
que aniquila qualquer esperança de perdão e renovação. [6] A fim de oferecer
aos presos um sinal concreto de proximidade, eu mesmo desejo abrir uma Porta Santa
numa prisão, para que seja para eles um símbolo que os convida a olhar o futuro
com esperança e renovado compromisso de vida.
11.
Sinais de esperança hão de ser oferecidos aos doentes, que se encontram em casa
ou no hospital. Que os seus sofrimentos encontrem alívio na proximidade de
pessoas que os visitem e no carinho que recebem! As obras de misericórdia são
também obras de esperança, que despertam nos corações sentimentos de gratidão.
E que a gratidão chegue a todos os profissionais de saúde que, em condições
tantas vezes difíceis, desempenham a sua missão com solícito cuidado pelas
pessoas doentes e mais frágeis.
Oxalá
não falte a atenção inclusiva por todos aqueles que, encontrando-se em
condições de vida particularmente extenuantes, experimentam a sua própria
fragilidade, de modo especial se sofrem de patologias ou deficiências que
limitam fortemente a autonomia pessoal. O cuidado para com eles é um hino à
dignidade humana, um canto de esperança que exige a sincronização de toda a
sociedade.
12.
E de sinais de esperança também têm necessidade aqueles que, em si mesmos, a
representam: os jovens. Muitas vezes, infelizmente, veem desmoronar-se os seus
sonhos. Não os podemos decepcionar: o futuro funda-se no seu entusiasmo. Como é
belo vê-los irradiar energia, por exemplo, quando voluntariamente arregaçam as
mangas e se comprometem nas situações de calamidade e mal-estar social! Já é
triste ver jovens sem esperança; se bem que se torna inevitável viver o
presente na melancolia e no tédio quando o futuro é incerto e impermeável aos
sonhos, o estudo não oferece saídas e a falta de emprego ou dum trabalho
suficientemente estável corre o risco de suprimir os desejos. A ilusão das
drogas, o risco da transgressão e a busca do efêmero criam nos jovens, mais do que
nos outros, confusão e escondem-lhes a beleza e o sentido da vida, fazendo-os
escorregar para abismos escuros e impelindo-os a gestos autodestrutivos. Por
isso, que o Jubileu seja, na Igreja, ocasião para um impulso a favor deles: com
renovada paixão, cuidemos dos adolescentes, dos estudantes, dos namorados, das
gerações jovens! Mantenhamo-nos próximo dos jovens, alegria e esperança da
Igreja e do mundo!
13.
Não poderão faltar sinais de esperança em relação aos migrantes, que deixam a
sua terra à procura duma vida melhor para si próprios e suas famílias. Que as
suas expetativas não sejam frustradas por preconceitos e isolamentos! Ao
acolhimento, que no respeito pela sua dignidade abre os braços a cada um deles,
junte-se a responsabilidade, de modo que a ninguém seja negado o direito de
construir um futuro melhor. A tantos exilados, deslocados e refugiados que, por
acontecimentos internacionais controversos, são forçados a fugir para evitar
guerras, violência e discriminação, sejam garantidos a segurança e o acesso ao
trabalho e à instrução, instrumentos necessários para a sua inserção no novo
contexto social.
Possa
a comunidade cristã estar sempre pronta a defender os direitos dos mais débeis.
Generosamente abra de par em par as portas do acolhimento, para que nunca falte
a ninguém a esperança duma vida melhor. Ressoe nos corações a Palavra do Senhor
que, na grande parábola do juízo final, disse: «Era estrangeiro e
acolhestes-me», porque «sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais
pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 35.40).
14.
Sinais de esperança merecem-nos os idosos, que muitas vezes experimentam a
solidão e o sentimento de abandono. Valorizar o tesouro que eles são, a sua
experiência de vida, a sabedoria que trazem consigo e o contributo que podem
dar, é um empenho da comunidade cristã e da sociedade civil, chamadas a
trabalhar em conjunto em prol da aliança entre as gerações.
Dirijo
um pensamento particular aos avôs e às avós, que representam a transmissão da
fé e da sabedoria de vida às gerações mais jovens. Sejam amparados pela
gratidão dos filhos e pelo amor dos netos, que neles encontram as suas raízes,
compreensão e estímulo.
15.
E sentidamente, invoco a esperança para os milhares de milhões de pobres, a
quem muitas vezes falta o necessário para viver. Face à sucessão de renovadas
vagas de empobrecimento, corre-se o risco de nos habituarmos e resignarmos. Mas
não podemos desviar o olhar de situações tão dramáticas, que se veem já por
todo o lado, e não apenas em certas zonas do mundo. Todos os dias encontramos
pessoas pobres ou empobrecidas e, por vezes, podem ser nossas vizinhas de casa.
Frequentemente, não têm uma habitação nem alimentação suficiente para o dia.
Sofrem a exclusão e a indiferença de muitos. É escandaloso que, num mundo
dotado de enormes recursos destinados em grande parte para armas, os pobres
sejam «a maioria (…), milhares de milhões de pessoas. Hoje são mencionados nos
debates políticos e económicos internacionais, mas com frequência parece que os
seus problemas se coloquem como um apêndice, como uma questão que se acrescenta
quase por obrigação ou perifericamente, quando não são considerados meros danos
colaterais. Com efeito, na hora da implementação concreta, permanecem
frequentemente no último lugar». [7] Não esqueçamos: os pobres são quase sempre
vítimas, não os culpados.
Apelos
em favor da esperança
16.
Fazendo ecoar a palavra antiga dos profetas, o Jubileu lembra que os bens da
terra se destinam a todos, e não a poucos privilegiados. É preciso que seja generoso
quem possui riquezas, reconhecendo o rosto dos irmãos em necessidade. Penso de
modo particular naqueles que carecem de água e alimentação: a fome é uma chaga
escandalosa no corpo da nossa humanidade, e convida todos a um rebate de
consciência. Renovo o apelo para que, «com o dinheiro usado em armas e noutras
despesas militares, constituamos um Fundo global para acabar de vez com a fome
e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim de que os seus
habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem precisem de
abandonar os seus países à procura duma vida mais digna». [8]
Outro
convite premente que desejo fazer, tendo em vista o Ano Jubilar, destina-se às
nações mais ricas, para que reconheçam a gravidade de muitas decisões tomadas e
estabeleçam o perdão das dívidas dos países que nunca poderão pagá-las. Mais do
que magnanimidade, é uma questão de justiça, agravada hoje por uma nova forma
de desigualdade de que se vai tomando consciência: «Com efeito, há uma
verdadeira “dívida ecológica”, particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a
desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso
desproporcionado dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns
países». [9] Como ensina a Sagrada Escritura, a terra pertence a Deus e todos
nós vivemos nela como «estrangeiros e hóspedes» ( Lv 25, 23). Se queremos
verdadeiramente preparar no mundo a senda da paz, empenhemo-nos em remediar as
causas remotas das injustiças, reformulemos as dívidas injustas e insolventes,
saciemos os famintos.
17. Durante o próximo Jubileu, ocorrerá um aniversário muito significativo para todos os cristãos: completar-se-ão 1700 anos da celebração do primeiro grande Concílio ecuménico, o de Niceia. É bom lembrar que já em diversas ocasiões, desde os tempos apostólicos, os Pastores se reuniram em assembleia com a finalidade de tratar temáticas doutrinais e questões disciplinares. Nos primeiros séculos da fé, multiplicaram-se os Sínodos tanto no Oriente como no Ocidente cristão, mostrando como era importante guardar a unidade do Povo de Deus e o anúncio fiel do Evangelho. O Ano Jubilar poderá ser uma importante oportunidade para tornar concreto este modo sinodal, que hoje a comunidade cristã sente como expressão cada vez mais necessária para melhor corresponder à urgência da evangelização: todos os batizados, cada qual com o próprio carisma e ministério, se sintam corresponsáveis pela mesma a fim de que muitos sinais de esperança deem testemunho da presença de Deus no mundo.
O Concílio de Niceia teve a missão de preservar a unidade, então seriamente ameaçada pela negação da plena divindade de Jesus Cristo e da sua igualdade com o Pai. Estiveram presentes cerca de trezentos Bispos que, convocados sob impulso do imperador Constantino em 20 de maio de 325, se reuniram no palácio imperial. Depois de vários debates, todos, com a graça do Espírito, se reconheceram no Símbolo de fé que ainda hoje professamos na Celebração Eucarística dominical. Os Padres conciliares quiseram iniciar aquele Símbolo empregando pela primeira vez a expressão «Nós cremos», [10] testemunhando que, naquele «Nós», todas as Igrejas se encontravam em comunhão e todos os cristãos professavam a mesma fé.
O
Concílio de Niceia é um marco miliário na história da Igreja. O aniversário da
sua realização convida os cristãos a unirem-se no louvor e agradecimento à
Santíssima Trindade e, em particular, a Jesus Cristo, o Filho de Deus,
«consubstancial ao Pai», [11] que nos revelou este mistério de amor. Mas Niceia
constitui também um convite a todas as Igrejas e Comunidades eclesiais para
avançarem rumo à unidade visível, não se cansando de procurar formas
apropriadas para corresponder plenamente à oração de Jesus: «Que todos sejam um
só, como Tu, Pai, estás em mim e Eu em ti; para que assim eles estejam em Nós e
o mundo creia que Tu me enviaste» ( Jo 17, 21).
No
Concílio de Niceia, tratou-se também da data da Páscoa. A este respeito, ainda
hoje existem posições diferentes, que impedem de celebrar, no mesmo dia, o
evento fundante da fé. Por uma circunstância providencial, isso acontecerá
precisamente no ano de 2025. Seja isto um apelo a todos os cristãos do Oriente
e do Ocidente para darem resolutamente um passo rumo à unidade em torno duma
data comum para a Páscoa. Vale a pena recordar que muitos desconhecem as diatribes
do passado e não entendem como possam subsistir divisões a tal propósito.
Ancorados
na esperança
18.
A esperança forma, juntamente com a fé e a caridade, o tríptico das «virtudes
teologais», que exprimem a essência da vida cristã (cf. 1 Cor 13, 13; 1 Ts 1,
3). No dinamismo indivisível das três, a esperança é a virtude que imprime, por
assim dizer, a orientação, indicando a direção e a finalidade da existência
crente. Por isso, o apóstolo Paulo convida-nos a ser «alegres na esperança,
pacientes na tribulação, perseverantes na oração» (Rm 12, 12). Assim deve ser;
precisamos de transbordar de esperança (cf. Rm 15, 13) para testemunhar de modo
credível e atraente a fé e o amor que trazemos no coração; para que a fé seja
jubilosa, a caridade entusiasta; para que cada um seja capaz de oferecer ao
menos um sorriso, um gesto de amizade, um olhar fraterno, uma escuta sincera,
um serviço gratuito, sabendo que, no Espírito de Jesus, isso pode tornar-se uma
semente fecunda de esperança para quem o recebe. Mas qual é o fundamento da
nossa esperança? Para o compreender, é bom deter-nos nas razões da nossa
esperança (cf. 1 Pd 3, 15).
19.
«Creio na vida eterna»: [12] assim professa a nossa fé, e a esperança cristã
encontra nestas palavras um ponto fundamental de apoio. De fato, «é a virtude
teologal pela qual desejamos (…) a vida eterna como nossa felicidade». [13] O
Concílio Ecumênico Vaticano II afirma: «Se faltam o fundamento divino e a
esperança da vida eterna, a dignidade humana é gravemente lesada, como tantas
vezes se verifica nos nossos dias, e os enigmas da vida e da morte, do pecado e
da dor ficam sem solução, o que frequentemente leva os homens ao desespero».
[14] Enquanto, em virtude da esperança na qual fomos salvos, vendo passar o
tempo, temos a certeza que a história da humanidade e a de cada um de nós não
correm para uma meta sem saída nem para um abismo escuro, mas estão orientadas
para o encontro com o Senhor da glória. Por isso vivemos na expectativa do seu
regresso e na esperança de vivermos n’Ele para sempre: é com este espírito que
fazemos nossa aquela comovente invocação dos primeiros cristãos com que termina
a Sagrada Escritura: «Vem, Senhor Jesus!» ( Ap 22, 20).
20.
Jesus morto e ressuscitado é o coração da nossa fé. São Paulo, ao enunciar este
conteúdo em poucas palavras (usa só quatro verbos), transmite-nos o «núcleo» da
nossa esperança. «Transmiti-vos, em primeiro lugar, o que eu próprio recebi:
Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras; foi sepultado e
ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras; apareceu a Cefas e depois
aos Doze» ( 1Cor 15, 3-5). Cristo morreu, foi sepultado, ressuscitou,
apareceu. Por nós, passou através do drama da morte. O amor do Pai o ressuscitou na força do Espírito, fazendo da sua humanidade as primícias da
eternidade para a nossa salvação. A esperança cristã consiste precisamente
nisto: face à morte onde tudo parece acabar, através de Cristo e da sua graça
que nos foi comunicada no Batismo, recebe-se a certeza de que «a vida não acaba,
apenas se transforma», [15] para sempre. Com efeito, sepultados juntamente com
Cristo no Batismo, recebemos nele, ressuscitado, o dom duma vida nova, que
derruba o muro da morte, fazendo dela uma passagem para a eternidade.
E se
diante da morte, dolorosa separação que nos obriga a deixar os nossos entes
queridos, não é possível qualquer retórica, o Jubileu oferecer-nos-á a
oportunidade de descobrir, com imensa gratidão, o dom daquela vida nova
recebida no Batismo, capaz de transfigurar o seu drama. É significativo
repensar, no contexto jubilar, como este mistério foi compreendido desde os
primeiros séculos da fé. Durante muito tempo, por exemplo, os cristãos
construíram a pia batismal em forma octogonal, e ainda hoje podemos admirar
muitos batistérios antigos que mantêm esta forma, como em São João de Latrão na
cidade de Roma. Indica que, na fonte batismal, se inaugura o oitavo dia, isto é
o da ressurreição, o dia que ultrapassa o ritmo habitual, marcado pela cadência
semanal, abrindo assim o ciclo do tempo à dimensão da eternidade, à vida que
dura para sempre: esta é a meta para a qual tendemos na nossa peregrinação
terrena (cf. Rm 6, 22).
O testemunho mais convincente desta esperança é-nos oferecido pelos mártires que, firmes na fé em Cristo ressuscitado, foram capazes de renunciar à própria vida da terra para não trair o seu Senhor. Temo-los em todas as épocas e são numerosos – e talvez mais do que nunca nos nossos dias – como confessores da vida que não tem fim. Precisamos de conservar o seu testemunho para tornar fecunda a nossa esperança.
Estes
mártires, pertencentes às diferentes tradições cristãs, são também sementes de
unidade, porque exprimem o ecumenismo do sangue. Durante o Jubileu desejo
ardentemente que não falte uma celebração ecumênica para evidenciar a riqueza
do testemunho destes Mártires.
21. Então, que será de nós depois da morte? Com Jesus, além deste limiar, há a vida eterna, que consiste na plena comunhão com Deus, na contemplação e participação do seu amor infinito. Tudo o que agora vivemos na esperança, vê-lo-emos então na realidade. A propósito, escreveu Santo Agostinho: «Quando me unir a Vós com todo o meu ser, não existirá para mim em lado algum dor e tristeza. A minha vida será uma vida verdadeira, totalmente cheia de Vós». [16] Então, o que caracterizará tal plenitude de comunhão? O ser feliz. A felicidade é a vocação do ser humano, uma meta que diz respeito a todos.
Mas, o que é a felicidade? Que felicidade esperamos e desejamos? Não uma alegria passageira, uma satisfação efêmera que, uma vez alcançada, volta sempre a pedir mais, numa espiral de avidez em que o espírito humano nunca se encontra saciado, antes sente-se cada vez mais vazio. Precisamos duma felicidade que se cumpra definitivamente naquilo que nos realiza, ou seja, no amor, para se poder dizer já agora: sou amado, logo existo; e existirei para sempre no Amor que não desilude e do qual nada e ninguém me poderá separar. Recordemos ainda as palavras do Apóstolo: «Estou convencido de que nem a morte nem a vida, nem os anjos nem os principados, nem o presente nem o futuro, nem as potestades, nem a altura nem o abismo, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, Senhor nosso» (Rm 8, 38-39).
22. Outra realidade ligada à vida eterna é o juízo de Deus, quer no termo da nossa existência quer no fim dos tempos. Muitas vezes a arte tentou representá-lo – pensemos na obra-prima de Michelangelo, na Capela Sistina –, atendo-se à concepção teológica da época e transmitindo um sentimento de temor a quem o observa. Se é justo preparar-se com viva consciência e seriedade para o momento que recapitula a existência, ao mesmo tempo é necessário fazê-lo sempre na dimensão da esperança, virtude teologal que sustenta a vida e nos permite não cair no medo. O juízo de Deus, que é amor (cf. 1Jo 4, 8.16), só poderá basear-se no amor, especialmente naquele que tivermos, ou não, praticado para com os mais necessitados, nos quais Cristo, o próprio Juiz, está presente (cf. Mt 25, 31-46). Trata-se, portanto, dum juízo diferente do juízo dos homens e dos tribunais terrenos; deve ser entendido como uma relação de verdade com Deus-amor e consigo mesmo dentro do mistério insondável da misericórdia divina. A Sagrada Escritura afirma a este respeito: «Tu ensinaste o teu povo que o justo deve ser amigo dos homens, e deste a teus filhos uma boa esperança, porque, após o pecado, dás a conversão (…), para que, ao sermos julgados, esperemos misericórdia» ( Sb 12, 19.22). Como escreveu Bento XVI, «no momento do Juízo, experimentamos e acolhemos este prevalecer do seu amor sobre todo o mal no mundo e em nós. A dor do amor torna-se a nossa salvação e a nossa alegria». [17]
Por
conseguinte, o juízo diz respeito à salvação na qual esperamos e que Jesus nos
obteve com a sua morte e ressurreição. Visa abrir ao encontro definitivo com
Ele. E, como em tal contexto não se pode pensar que o mal cometido permaneça
oculto, o mesmo precisa de ser purificado, para nos permitir a passagem
definitiva ao amor de Deus. Compreende-se, neste sentido, a necessidade de
rezar por aqueles que concluíram o caminho terreno: uma solidariedade na
intercessão orante que encontra a sua eficácia na comunhão dos santos, no
vínculo comum que nos une em Cristo, primogênito da criação. Assim, a
Indulgência Jubilar, em virtude da oração, destina-se de modo particular a
todos aqueles que nos precederam, para que obtenham plena misericórdia.
23. De fato, a indulgência permite-nos descobrir como é ilimitada a misericórdia de Deus. Não é por acaso que, na antiguidade, o termo «misericórdia» era cambiável com o de «indulgência», precisamente porque pretende exprimir a plenitude do perdão de Deus que não conhece limites.
O sacramento da Penitência assegura-nos que Deus apaga os nossos pecados. Vêm à mente, com toda a sua carga de consolação, estas palavras do Salmo: «É Ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as tuas enfermidades. É Ele quem resgata a tua vida do túmulo e te enche de graça e de ternura. (…) O Senhor é misericordioso e compassivo, é paciente e cheio de amor. (…) Não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos castigou segundo as nossas culpas. Como é grande a distância dos céus à terra, assim são grandes os seus favores para os que O temem. Como o Oriente está afastado do Ocidente, assim Ele afasta de nós os nossos pecados» (Sl 103, 3-4.8.10-12). A Reconciliação sacramental não é apenas uma estupenda oportunidade espiritual, mas representa um passo decisivo, essencial e indispensável no caminho de fé de cada um. Ali permitimos ao Senhor que destrua os nossos pecados, sare o nosso coração, nos levante e abrace, nos faça conhecer o seu rosto terno e compassivo. Na verdade, não há modo melhor de conhecer a Deus do que deixar-se reconciliar por Ele (cf. 2 Cor 5, 20), saboreando o seu perdão. Por isso, não renunciemos à Confissão, mas descubramos a beleza do Sacramento da cura e da alegria, a beleza do perdão dos pecados.
Todavia o pecado, como sabemos por experiência pessoal, «deixa a sua marca», traz consigo consequências: não só exteriores, como consequências do mal cometido, mas também interiores, pois «todo o pecado, mesmo venial, traz consigo um apego desordenado às criaturas, o qual precisa de ser purificado, quer nesta vida quer depois da morte, no estado que se chama Purgatório». [18] Assim, na nossa débil humanidade atraída pelo mal, permanecem «efeitos residuais do pecado». São tirados pela indulgência, sempre por graça de Cristo, o qual, como escreveu São Paulo VI, é «a nossa “indulgência”». [19] A Penitenciária Apostólica providenciará à emanação das disposições necessárias para poder obter e tornar efetiva a prática da Indulgência Jubilar.
Uma tal experiência repleta de perdão não pode deixar de abrir o coração e a mente para perdoar. Perdoar não muda o passado, não pode modificar o que já aconteceu; no entanto, o perdão pode-nos permitir mudar o futuro e viver de forma diferente, sem rancor, ódio e vingança. O futuro iluminado pelo perdão permite ler o passado com olhos diversos, mais serenos, mesmo que ainda banhados de lágrimas.
No passado Jubileu extraordinário, instituí os Missionários da Misericórdia, que continuam a desempenhar uma missão importante. Que eles exerçam o seu ministério também durante o próximo Jubileu, restituindo esperança e perdoando todas as vezes que um pecador se dirija a eles de coração aberto e espírito arrependido. Continuem a ser instrumentos de reconciliação, e ajudem a olhar para o futuro com a esperança do coração que provém da misericórdia do Pai. Espero que os Bispos possam valer-se do seu precioso serviço, sobretudo enviando-os onde a esperança está posta a dura prova, como nas prisões, nos hospitais e nos lugares onde a dignidade da pessoa é espezinhada, nas situações mais desfavorecidas e nos contextos de maior degradação, para que ninguém fique privado da possibilidade de receber o perdão e a consolação de Deus.
24. A esperança encontra, na Mãe de Deus, a sua testemunha mais elevada. nela vemos como a esperança não seja um efêmero otimismo, mas dom de graça no realismo da vida. Como todas as mães, cada vez que olhava para o Filho pensava no seu futuro, e certamente no coração trazia gravadas aquelas palavras que Simeão lhe dirigira no templo: «Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição; uma espada trespassará a tua alma» (Lc 2, 34-35). E aos pés da cruz, enquanto via Jesus inocente sofrer e morrer, embora atravessada por terrível angústia, repetia o seu «sim», sem perder a esperança e a confiança no Senhor. Desta forma, cooperava em nosso favor no cumprimento do que dissera seu Filho ao anunciar que Ele teria de «sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei, e ser morto e ressuscitar depois de três dias» (Mc 8, 31), e no parto daquela dor oferecida por amor tornava-se nossa Mãe, Mãe da esperança. Não é por acaso que a piedade popular continua a invocar a Virgem Santa como Stella Maris, um título expressivo da esperança segura de que, nas tempestuosas vicissitudes da vida, a Mãe de Deus vem em nosso auxílio, apoia-nos e convida-nos a ter fé e a continuar a esperar.
A propósito, apraz-me recordar que o Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe, na Cidade do México, está preparando para celebrar, em 2031, os 500 anos da primeira aparição da Virgem. Através do jovem Juan Diego, a Mãe de Deus fazia-nos chegar uma revolucionária mensagem de esperança que, ainda hoje, repete a todos os peregrinos e fiéis: «Porventura não estou aqui Eu, que sou tua Mãe?» [20] Uma mensagem semelhante é impressa nos corações, em tantos Santuários Marianos espalhados pelo mundo, metas de inúmeros peregrinos que confiam à Mãe de Deus preocupações, sofrimentos e anseios. Neste Ano Jubilar, que os Santuários sejam lugares sagrados de acolhimento e espaços privilegiados para gerar esperança. Aos peregrinos que vierem a Roma, convido-os a fazerem uma paragem orante nos Santuários Marianos da cidade a fim de venerar a Virgem Maria e invocar a sua proteção. Estou confiante de que todos, especialmente aqueles que sofrem e estão atribulados, poderão experimentar a proximidade da mais afetuosa das mães, que nunca abandona os seus filhos; Ela que é, para o santo Povo de Deus, «sinal de esperança segura e de consolação». [21]
25. No caminho rumo ao Jubileu, voltemos à Sagrada Escritura e sintamos, dirigidas a nós, estas palavras: «Nós que procuramos refúgio n’Ele, encontramos grande estímulo agarrando-nos à esperança proposta. Nessa esperança, temos como que uma âncora segura e firme da alma, que penetra até ao interior do véu, onde Jesus entrou como nosso precursor» (Hb 6, 18-20). É um forte convite a nunca perder a esperança que nos foi dada, a mantê-la firme, encontrando refúgio em Deus.
A imagem da âncora é sugestiva para compreender a estabilidade e a segurança que possuímos no meio das águas agitadas da vida, se nos confiarmos ao Senhor Jesus. As tempestades nunca poderão prevalecer, porque estamos ancorados na esperança da graça, capaz de nos fazer viver em Cristo, superando o pecado, o medo e a morte. Esta esperança, muito maior do que as satisfações quotidianas e as melhorias nas condições de vida, transporta-nos para além das provações e exorta-nos a caminhar sem perder de vista a grandeza da meta a que somos chamados: o Céu.
Portanto, o próximo Jubileu há de ser um Ano Santo caraterizado pela esperança que não conhece ocaso, a esperança em Deus. Que nos ajude também a reencontrar a confiança necessária, tanto na Igreja como na sociedade, no relacionamento interpessoal, nas relações internacionais, na promoção da dignidade de cada pessoa e no respeito pela criação. Que o testemunho crente seja fermento de esperança genuína no mundo, anúncio de novos céus e nova terra (cf. 2 Pd 3, 13), onde habite a justiça e a harmonia entre os povos, visando a realização da promessa do Senhor.
Deixemo-nos,
desde já, atrair pela esperança, consentindo-lhe que, por nosso intermédio, se
torne contagiosa para quantos a desejam. Possa a nossa vida dizer-lhes: «Confia
no Senhor! Sê forte e corajoso, e confia no Senhor» (Sl 27, 14). Que a força
da esperança encha o nosso presente, aguardando com confiança o regresso do
Senhor Jesus Cristo, a quem é devido o louvor e a glória agora e nos séculos
futuros.
Dado em Roma, junto de São João de Latrão, na Solenidade da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo, 9 de maio do ano 2024, décimo segundo de Pontificado.
FRANCISCO
[1] Discursos, 198 augm., 2.
[2]
Cf. Fonti Francescane, n. 263, 6.10.
[3]
Cf. Misericordiae Vultus, Bula de proclamação do Jubileu Extraordinário da
Misericórdia, nn. 1-3.
[4]
Const. past. Gaudium et spes, n. 4.
[5]
Francisco, Carta enc. Laudato si’, n. 50.
[6]
Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 2267.
[7]
Carta enc. Laudato si’, n. 49.
[8]
Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, n. 262.
[9]
Carta enc. Laudato si’, n. 51.
[10] Símbolo Niceno: H. Denzinger – A.
Schönmetzer, Enchiridion Symbolorum definitionum et declarationum de rebus
fidei et morum, n. 125.
[11] Ibidem.
[12] Símbolo dos Apóstolos: H. Denzinger – A.
Schönmetzer, Enchiridion Symbolorum definitionum et declarationum de rebus
fidei et morum, n. 30.
[13] Catecismo da Igreja Católica, n. 1817.
[14]
Const. past. Gaudium et spes, n. 21.
[15]
Missal Romano, Prefácio dos defuntos I.
[16] Confissões, X, 28.
[17]
Carta enc. Spe salvi, n. 47.
[18] Catecismo da Igreja Católica, 1472.
[19]
Carta ap. Apostolorum limina, 23.05.1974, II.
[20] Nican Mopohua, n. 119.
[21] Conc. Ecum. Vat. II, Co
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